(CON)tradição: qual a tua?
Descobertos, colonizados e explorados, os territórios e seus habitantes, uns daqui e outros de longe, são todos personagens de uma história que é escrita a cada dia, em casa e na rua, no campo e na cidade, tanta gente e tanta diferença. Nesse processo de coexistir no espaço, conflitam tradição e contradição.
Entendemos a tradição como o resultado de experiências vividas, uma forma de transmitir conhecimentos e costumes por gerações. A tradição ao mesmo tempo que fortalece a construção da identidade, memória e pertencimento de uma cultura, pode perpetuar costumes anacrônicos.
Sendo humanos singulares e contraditórios constituímos cidades que, por sua vez, também são cheias de contradições. Nelas, nossas diferenças essenciais são muitas vezes vistas como ameaças que se refletem em ações excludentes. Porque não nos reconhecemos como diferentes e nos respeitamos como iguais? Assumindo nossos corpos, nossas cores e nossas cidades.
A mídia exibe a cidade que à convém, camuflando política e culturalmente a realidade cotidiana de grande parte da população. Essa escolha faz parte da dominação própria do urbanismo de mercado, sendo assim, coexistem múltiplas realidades em mundos separados que precisam ignorar-se para sobreviver. Estas características transformam a urbe em uma arena de conflitos da qual Pelotas não se diferencia.
Pelotas ou Satolep, a contradição e a inversão, seja de valores, de letras ou de sentindo, está presente até mesmo nas formas em que denominamos nossa cidade. As contradições começam em nossas origens, a terra dos famosos “doces de Pelotas” na verdade tem uma história salgada. A cidade desenvolveu sua economia baseada no trabalho dos escravizados na produção do charque ─ carne bovina conservada com sal e exposição ao sol. Enquanto isso, o açúcar era uma das moedas recebidas pela venda de charque para outras regiões do país, sendo aqui utilizado, principalmente, na produção de doces de origem africana e europeia.
Na “Princesa do Sul” as heranças de aristocratas são exibidas com uma máscara de doçura que esconde o sangue, sal e suor que construíram suas estruturas. Afinal, o que tu achas que as charqueadas produziam em tempos de entressafra? Tijolos, telhas e o que mais tivesse para fazer, valia de tudo para não deixar o escravizado parado.
Desenvolvemo-nos às margens do arroio Pelotas e do canal São Gonçalo, mas passados aproximadamente dois séculos, vemos o estrago: canalizamos o arroio Pepino, transpomos o arroio Santa Bárbara e assim a cidade que se desenvolveu graças às águas deu as costas para elas. Hoje, o olhar especulativo se volta novamente para essas margens, passamos das grandes charqueadas aos grandes condomínios fechados. Assim, os charqueadores não existem mais porém os “senhores” são outros. Pelotas continua mantendo essa herança de que a classe dominante é a que define como e para quem a cidade deve ser e se desenvolver.
Como em muitas cidades brasileiras, vivemos em conflito, confronto e contradição. Nesse contexto, Pelotas é considerada pólo universitário, mas a academia nos deixa com a impressão de que seu processo de formação é alheio à essas realidades e que não conhece ou não quer conhecer as problemáticas urbanas que gritam a todo momento em nossas caras.
Enquanto acontece a expansão imobiliária e os investimentos em grandes empreendimentos a cidade informal também cresce, perpetuando assim as desigualdades. Diante disso parte da população busca, mesmo que de forma precária, viabilizar o seu habitar na cidade, resistindo a um novo modelo de cidade que não as inclui, que desconsidera as relações sociais existentes e o contexto histórico e cultural em que estão inseridas.
As contradições às quais sobrevivemos não são tradições somente aqui. A vida que levamos e a cidade que vivenciamos nos leva a questionar: Quais as (con)tradições que permeiam tua cidade? E a tua vida? Elas te representam ou te contradizem? As tradições que carregas e praticas ainda possuem algum significado ou tornaram-se apenas uma reprodução irracional?
(con)tradição, qual é a tua?